As alergias cutâneas, como as Reações Adversas ao Alimento (RAA) e a Dermatite Atópica Canina (DAC), são comuns em cães e frequentemente envolvem prurido e lesões na pele. Pesquisas recentes destacam uma relação bidirecional entre o intestino e a pele, sugerindo que alterações na microbiota intestinal podem influenciar as condições dermatológicas. Dois estudos lançam luz sobre como dietas hipoalergênicas afetam o microbioma intestinal em cães com doenças alérgicas de pele e associam essas mudanças à melhora clínica.
Um dos estudos avaliou o efeito da ração Farmina Ultra Hypo (FUH) — uma dieta com peixe hidrolisado e amido de arroz — em cães com prurido ao longo de 8 semanas. Embora não tenha havido diferença significativa na diversidade bacteriana total (diversidade alfa) antes e depois da dieta entre os grupos de alergia (RAA, DAC e duvidoso), a composição da microbiota intestinal (diversidade beta) mudou significativamente nos cães com RAA e DAC após a dieta. De modo geral, a dieta aumentou a presença de bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta (AGCCs), considerados benéficos. Destaca-se que os cães com RAA apresentaram aumento de gêneros bacterianos benéficos como Roseburia e Lachnospira após a dieta, o que não ocorreu nos cães com DAC. Antes da dieta, os cães com DAC já apresentavam um padrão distinto de microbiota em nível de gênero, e sua resposta à dieta também foi diferente — por exemplo, Bacteroides benéficos diminuíram nos cães com DAC, mas aumentaram nos cães com RAA e no grupo duvidoso. A análise funcional indicou mudanças em vias metabólicas, com os cães com DAC mostrando melhora em vias relacionadas a glicosfingolipídeos e apelina, potencialmente relevantes para a função de barreira da pele.
Outro estudo, focado especificamente em cães com DAC já em tratamento estável e recebendo uma dieta hidrolisada de frango com arroz, avaliou a adição de um nutracêutico contendo Lactobacillus reuteri inativado por calor e outros componentes. Essa combinação levou a uma redução estatisticamente significativa nas lesões cutâneas (CADLI) e no prurido (VAS) durante os 60 dias de uso do nutracêutico. Importante destacar que o Índice de Disbiose (ID) também caiu significativamente. Essa melhora se manteve por algum tempo mesmo após a suspensão do nutracêutico, embora o índice tendesse a subir novamente até o dia 120. O estudo mostrou que terapias padrão para DAC (lokivetmabe, imunoterapia, oclacitinib) não impactaram negativamente o ID nem os escores fecais.
Algumas limitações: Ambos os estudos apresentaram limitações, como o tamanho reduzido das amostras por grupo e a ausência de grupo controle saudável, o que dificulta a comparação definitiva da microbiota de cães alérgicos com cães saudáveis. No primeiro estudo, não foi registrado o histórico alimentar anterior, o que pode ter influenciado a microbiota inicial. Já o segundo estudo utilizou um produto combinado, dificultando isolar os efeitos da dieta e do nutracêutico.
Aspectos clínicos relevantes:
Os estudos reforçam a importância do eixo intestino-pele na dermatite alérgica canina.
Dietas hipoalergênicas podem servir tanto como ferramenta diagnóstica para RAA quanto como recurso terapêutico com impacto clínico e sobre a microbiota intestinal.
A resposta da microbiota intestinal à dieta pode variar conforme o tipo de alergia (RAA vs. DAC).
Cães com DAC, que não apresentaram o mesmo enriquecimento microbiano observado em cães com RAA, podem se beneficiar especialmente de suporte intestinal adicional, como probióticos.
Medicamentos antipruriginosos usuais parecem ser compatíveis com estratégias de melhora da saúde intestinal.
A intervenção dietética é um componente-chave no manejo de doenças alérgicas da pele, e esses estudos sugerem que seus benefícios se estendem à modulação do microbioma intestinal, potencialmente promovendo saúde intestinal e contribuindo para a saúde cutânea por meio do eixo intestino-pele.
Fernando Bittencourt Luciano
Farmacêutico e doutor em Ciências dos Alimentos, com uma trajetória que une ciência, inovação e empreendedorismo. Atualmente, é professor no Programa de Pós Graduação em Ciência Animal PUCPR e sócio na Wesen Green. Sua pesquisa é voltada para o uso de compostos naturais com ação antimicrobiana e anti-inflamatória, buscando desenvolver soluções inovadoras e seguras para promover a saúde e o bem-estar de cães e gatos.